Onde está você, Lara Jones?

Nikke Salvatore

“ O mar estava em sua maior conjunção ao céu, vestia estrelas em sua extensão como um vestido de gala, como se a noite esquecera que era noite e simplesmente respirasse algo fora do tempo, uniforme e cálido como os beijos atemporais que nos permitíamos. A melodia de Netuno havia silenciado a sua gaita e agora Ricardo brincava com os dedos entrelaçados aos meus a formar um desenho de coração na areia. A lua cheia cada vez mais próxima de nós trazia a sua transcrição em luzes colossais: Apenas…

– Quem dera que ainda fosse verdade. – Suspiro tristemente ao encarar Ricardo, concedo-lhe um beijo suave na testa e parto de novo para a pousada em Noronha. Ela a cada passo se tornava mais distante.”

Acordo do sonho suada, e outra crise de choro noturna me trespassa. Ao fim ainda não estou completamente aliviada. Esse vazio que beira ao inexplicável é uma fonte que ao máximo tento escapar, mas hora ou outra me afogo nas lágrimas. São cinco da manhã, me levanto. Nunca tive vocação para ser Bela Adormecida mesmo, parto para a cozinha. O cheiro da torta de maçã que eu havia feito ontem à noite era o aromatizador perfeito para a minha geladeira. Uma Brida sonolenta permanece em sua cama na sala, afinal é sábado. Na mesa estão o meu prato com um pedaço de torta, um copo d’água e a minha lucidez diluída. Respiro. Por que a madrugada tem esse gosto tão cinza, Deus?! 

As projeções do futuro vem bailando na cabeça a cada pedaço de torta goela abaixo. Ainda preciso comprar os sapatinhos pro chá de bebê da Cris. Ainda preciso acertar a conta de luz e fazer a lista de compras dessa semana. Por um momento, paro e me pego pensando: “ Num dia você é jovem e no outro você tem que decidir a marca de sachê premium para sua gata. Que ironia, Lara Jones!” Esse agora é o mais próximo de bebês que tenho. A maternidade Joniana conhece caminhos tão compatíveis com a sociedade que a emoção é um artigo de Lacan. Parei com o momento e com a torta. E uma latinha de  Coca-Cola sai da prisão da geladeira,  deve ser sufocante a ditadura da torta.

Passeio pelo apartamento. Ligo o notebook e vou ao trabalho. E assim se passam as primeiras horas da manhã. Tomo um banho ao som de With or Without you do U2. Não, não vou chorar por esse momento. A água quente é o colo que me afaga. Eis os meus vazios. Eis as minhas peles. Como não pensar em escoriações ou esfoliações? Brida acorda de muito bom humor na porta do banheiro. Realmente, não é hora de quebrar. Rio fracamente. E vamos às escolhas da vez. Uma saia mídi preta, uma plataforma caramelo e uma blusa branca com pequenas listras azuis me acenaram. Lembro bem da última vez que a usei. Mas por que não retomar agora? Repito o coque e os Foxy eyes. Ao me olhar no espelho repito o mantra:

“ Não é fantasia se antes era você quem escolhia.”  

Mesmo com as fragilidades, o antes e o agora também me pertencem. Pego a minha bolsa. 

No supermercado já vejo o pânico da pandemia se instalar. Pelos acordes dos Ramones! Esbarrei com cinco carrinhos lotados de papel higiênico até as tampas! Pelo jeito o Apocalipse foi instaurado e o papel higiênico deve ser para limpar as merdas que a humanidade fez nos últimos tempos! Uma senhorinha com um ar de Marie Curie ao ver minha reação comenta comigo:

– As pessoas são criaturas curiosas,né? Não perceberam as causas da crise e acham que vão se proteger fugindo do remédio amargo da solução. – Ela ri amistosamente enquanto pega um pacote de macarrão ao meu lado.

– Verdade. Não aprenderam a dividir os recursos mas a si próprios. São ironias ambulantes. – Eu pego uma lata de molho de tomate.

– Minha filha, dessa vez não vai ter pizza no final, tenha certeza. – Ela ri pegando uma última caixa do freezer e desaparece com o seu carrinho pelas sessões entre a aglomeração de fatalistas de departamentos. Empurro meu carrinho e depois de não encontrar o sachê premium de Brida, opto por sua ração normal. Volto pro carro que finalmente tive coragem de tirar da garagem depois de tudo. Cris me manda uma mensagem e decido visitá-la. Parto pro Cambuci.

A Casa de Cris tem um ar de casa de vó. Com uma mangueira no quintal e um cheirinho de flor-de-laranjeira. Ela me recebe com um ar abatido. Carlos realmente fez um estrago grande.

– Finalmente decidiu sair da Batcaverna e vir visitar a Joana D’Arc aqui. – Ela comenta. Ofereci um sorriso à ela.

– Sim, por nossas irmãs até passamos mertiolate ardido nas nossas feridas. – respondo. Entramos. Tudo estava perfeitamente no lugar: os quadros com ilustrações dos grafites dos Gêmeos, as estantes abarrotadas de livros,  os móveis coloniais e os armários sortidos de louças que encontrávamos nas feirinhas de sábado. Na época Carlos, mesmo de cara amarrada “pelas quinquilharias compradas” ainda era o amigo de Ricardo que preparava um bife com fritas até nos fartarmos após a empreitada. Era o coxinha com pegada viking. Nunca imaginei que fosse pegar o lado mais escroto de Ragnar.

Entre umas garfadas na salada de atum ela me pergunta:

– Como tem ido à redação? Soube que tem um novo Clark Kent por lá. – Ela me concede um sorriso cúmplice.

– Uma loucura só. Com a ameaça de pandemia, o projeto que apresentei à Dandara corre o risco de ficar parado, mas não sabemos ao certo. E quanto ao Santos, parece ser um cara legal. Atrapalhado, mas legal. Me enviou três vezes o mesmo email com as revisões do texto para se certificar que ele não tinha se perdido na caixa de spam. – Respondi enquanto bebia um pouco do suco de laranja no copo da Mulher-gato que ela comprou da China. Sim, ela é uma geek raiz.

– E você, Cris? Como você está? – Ela afaga o vestido branco, a barriga já está bem mais proeminente. Os cachos dourados haviam resgatado um pouco do brilho que eu conhecia mas o olhar era de partir o coração. Ela suspira e me diz: 

– Estou tentando sobreviver pelo meu filho. O Guilherme não é culpado pelo pai que tem. Eu sou mais uma das doze milhões de mães solo no Brasil, Lara. Sei que não será fácil, mas vou encontrar forças até onde não imagino pelo meu filho. – Ela suspira.

– Eu soube da palhaçada no ultrassom. Ele deu as caras depois disso? – pergunto indignada.

– Mandou uma mensagem semana passada pedindo pra mandar pra casa da mãe dele umas camisas que esqueceu aqui. Disse que logo mandaria o berço que foi do irmão também. Se justificou dizendo que não pôde vir porque o pessoal do escritório de arquitetura tinha estendido a reunião por mais tempo. Eu sei em qual motel foi essa reunião!  Afff, Mana! Já me deu preguiça dele!

Interrompi meu suco porque aquilo cortou meu apetite.

– Lara, eu sei o que você está pensando. Mas esse Carlos não é o mesmo que a gente conhecia. Acho que no fundo nem ele se conhecia direito. Mas ainda nesse turbilhão de emoções te digo que não estou arrependida. O Guilherme é meu tudo. – Cris me fita.

– Você não merecia isso, Cris. O que o Carlos está fazendo com você e o Guilherme é desumano. – retruco indignada.

 – Lara, eu vou ficar bem. Infelizmente nesse mundo em que vivemos, a “culpa” de algo ter acontecido é sempre nossa. Como se o filho fosse um objeto, um pacote que se tem que se devolver ou carregar. E ainda tem gente que justifica essa canalhice dizendo que ele ainda não estava preparado pra isso. 

– Oiiii???? É isso mesmo que eu ouvi? Ele está preparado para um orgasmo mas não está preparado para um filho? A hipocrisia desse pensamento é pior que uma manteiga rançosa! – Sinto a minha crescente indignação tomar corpo. Respiro. E por um instante penso em como seria eu se estivesse no lugar de Cris. A cena faz brotar em meus olhos lágrimas de raiva mescladas com uma indignação feroz. Como o homem pode ser tão estúpido e canalha ao longo desses anos. Essas bases patriarcais são nauseantes.

 – Lara, sério, eu vou me reconstruir com ou sem apoio do Carlos. Tenho você, as meninas da redação, o pessoal de Ribeirão. Mamãe me ligou e a Lena vem passar um tempo comigo. Eu sei que você acha ela um pouco avoada, mas dá um desconto pra pisciana. Ela é legal!

Faço uma careta de gato ao ouvir isso.

– Mana, a menina colocou meio pode de sal no bolinho de bacalhau na última Páscoa sem falar nas outras peripécias. Cris, a Lena é sua irmã, eu sei e é em consideração a isso que vou relevar dela ser uma cabeça-de-vento!

Eu sorrio e ela também. Sim, a Cris que conheci aos poucos está de volta.

– E você? Já saiu com alguém? Desmontou a armadura ou a lustrou? – Ela levanta a sobrancelha.

– Cris, sério, não me sinto pronta pra nada. Tirei o carro da garagem hoje. Hoje! Porque podia prejudicar de vez o sistema. Mas na verdade nem queria tirar de lá depois que ele voltou da oficina. – respondo tentando não lacrimejar.

– Lara, flor, tudo a seu tempo. Eu sei que o Rick não iria querer te ver assim! – Ela me consola.

– Comecei a terapia há alguns dias. Quero tentar me reencontrar no meio dessa bagunça que me tornei. – respondo.

– A terapia te fará bem. Você precisa se permitir organizar e limpar o sótão. Lavar as janelas e deixar o sol entrar. Assim você restaura o seu lugar ou talvez se disponha a descer do sótão e voltar a andar pela casa inteira que é você.  

– Talvez…

Me despeço de Cris com a certeza de que há tempos difíceis a serem encarados mas há tempos que as dificuldades são telegramas pra mim.

Retorno pra casa. Encontrei de novo o trintão de sorriso sacana no elevador. Esse é do Clube do Carlos. Dou graças a Deus que as portas se abrem. Ele ofereceu ajuda com as compras e recusei.

– Não se preocupe, tenho habilidade de oito braços assim como Kali. – saio sem dar tempo dele responder. Acho que nem sacou.

Brida não torce o nariz para a ração, menos mal.

– Você podia economizar na acidez, às vezes. Desse jeito não vai sobrar pro suco de laranja e nem pra limonada– Ele sorri e vira um copo de vitamina de banana. A camiseta branca do ACDC está no seu modo impecável como ele sempre deixava.

– Você sabe que é mais forte que eu, Bottan.- retruco guardando os ovos na geladeira. 

– Yu Yu Hakusho às duas da tarde? Realmente temos alguém zangada. – Ele ri como se não tivesse amanhã. 

– Você poderia dar um puxão de orelha no Carlos . – retruco guardando a carne.

– Não se preocupe, ele aprenderá. – Ele ameniza o tom.

– Eu devia ter desconfiado desde o começo. Um cara que não gostava dos nossos passeios pela feirinha. – amenizo. Ele sorri e me abraça por trás. 

– Lara, este lugar pertence ao passado. – Ele solfeja ao meu ouvido.

– Este lugar está em mim, Ricardo. – respondo.

– E onde você está agora, Lara Jones? – Ele pergunta. Eu me viro e o encaro.

– Em algum lugar do tempo-espaço onde certezas são sapatos folgados do apenas. Onde os e se ainda são convidados e os parênteses são frutos do passado mais-que-perfeito colhidos no presente.- respondo. Uma lágrima desce. Meus lábios conhecem os dele num looping ininterrupto, ele me recosta à bancada da cozinha e pega com uma das mãos meu celular, o Never gonna be alone  do Nickelback estoura.

Epoché: Respire, Lara Jones. Encha de ar os teus pulmões. Nada e nenhum lugar precisa fazer sentido , até que você resolva dá-lo.

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