Sim, é você, Lara Jones!

Por: Nikke Salvatore

“A impressão que eu tenho é de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice. O tempo é irrealizável. Provisoriamente, o tempo parou para mim. Provisoriamente. Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro. O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar. Portanto, ao meu passado eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minhas necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo. Que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. O que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente, o sabor da minha vida. Acho que eu consegui fazê-lo. Vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”

(Simone de Beauvoir)

Foram essas as palavras que gravei com canivete suíço na porta de madeira do meu quarto. Para jamais esquecer quem eu era, quem eu sou e quem me tornarei. Eu estava sozinha, mas ainda assim bem. Passo pelo clássico momento “olhando pro nada e pensando em tudo”, observo à minha volta as cortinas brancas, o abajur em forma da boca dos Rolling Stones, a mesa de cabeceira com Mulheres que correm com os lobos e todo o restante. Sim, eu estava de volta.

Levantei às 06:30, com a minha juba cheia de nós. Parto pra cozinha, ligo a minha playlist “Rock is my life, baby!” e  “ Walk this way” logo inunda o cômodo  e na janela do apartamento aparece Brida, a gata mais escorpiana de toda São Paulo que eu já conheci. Ela pula pra dentro enquanto eu coloco o café e meus ovos mexidos na mesa. O ronronar dela acompanhado da subida na cadeira ao meu lado me soou um “Bom dia, humana! Onde está o meu café?!” Rsrs  Me recordei  das primeiras vezes que nos conhecemos em que tentei afagá-la e recebi arranhões profundos como resposta , fora o olhar penetrante que ela me dá todos os dias, mas com o tempo  me concedeu certo respeito, ainda que nas vezes que eu reclame da bagunça que ela deixa no meu cesto de roupas ela me responda com uma esfregada da cauda branca em forma de espanador bem na minha cara. Coloquei sua ração no chão e parti para a minha rotina no banheiro. Um elástico domou meu cabelo num rabo de cavalo e a minha cara pálida conheceu algum reflexo de vida com um batom vermelho e um toque sutil de blush. Após chamar o Uber, vesti uma blusa navy azul-marinho, uma calça jeans clara e a jaqueta de couro jogada à cadeira junto com o meu material. E que abram as portas da esperança! Tomei um elevador com as figuras mais marcantes do condomínio ( um adolescente na sua luta diária pra esconder as páginas pornôs da sua mãe bem ao lado, o vizinho metido a gostosão e a cinquentona fofoqueira do prédio), depois de um escrutínio descarado do trintão, o elevador me liberta e digo para mim mesma: “ E lá vamos nós né, Lara?! Porque para os dias de princesa que você sonhou, esse é o momento Cinderela na luta.”

A redação naquela quarta-feira fervia. Cumprimento rapidamente Suzi e Bia em suas mesas. Paula me grita de sua porta antes que eu colocasse minhas coisas na minha mesa:

– Lara, a Dandara quer te ver agora! – e retorna pra sua sala.

Suspiro e me preparo pro chumbo grosso que vem pela frente.

– Não! Não! Não! Eu não vou aceitar, Lara! – Dandara bate forte na mesa. Abro a boca para argumentar mas antes disso ela completa:

– Isso é fugir! Sinto muito mas não vou te atender, Lara! Não agora! Você não entende a importância dessa coluna para todas nós?! – Ela faz um gesto apontando pra mim. Reparo no turbante novo que ela tava usando, era de uma seda verde água que me remetia à realeza, hipnotizante.

– Sei, Dandara. Mas é como eu quis te dizer no email. O problema está em mim. Você sabe que há meses não estou bem. – rebato me sentando na cadeira de mogno em frente à ela. Suspiro e olho pro pôster enquadrado de Aretha Franklin e ao lado um de igual tamanho de Carolina Maria de Jesus.

– Então faça terapia, Lara. Mas não abandone a coluna. Não nos abandone. Não abandone as suas irmãs na luta! Estamos juntas numa causa. Sinto muito, mas você continua! Quero o artigo dessa semana até sexta-feira, por isso, mãos à obra! – Ela me dispensa sem nem pestanejar. Escorrego pela cadeira, faço meu gesto de despedida grega e digo:

– Ok, Dandara! – Suspiro e parto. Do reflexo da vidraça percebo ela remexendo nos papéis da redação. Ela sorri de canto de boca enquanto confabula algo consigo própria.

Na minha mesa observo as fotos com Ricardo, quando fomos para Noronha, o verão em Búzios e a festa de Réveillon em Campos do Jordão na casa da minha prima Bianca. Volto ao meu computador, e uma caneca de café é posta ao meu lado na mesa com o “ Vingardium Leviosa” estampado, aceito o presente.

– Como foi com a Dandara? – me pergunta Suzi com seus enormes olhos castanhos ,cabeleira ruiva e visual casual. Na sua mão esquerda, outra caneca de café mas com o brasão da Corvinal, sim, eis uma geração Noventista. 

– Não foi. Ela quer que eu continue. – Ela se recosta na quina da mesa e também suspira. 

– Já pensou em procurar uma terapia? Eu sei que lidar com isso não deve ser fácil. 

– Ainda não. Mas quero encontrar pra ontem. – Respondo em meio a outro gole.

– Já encontrou outra assistente? 

Suspiro e reviro os olhos.

– Ainda não. É outra coisa que também preciso providenciar. Affffff!!!

– Mas tenho mantido contato com a Cris. Ser mãe solo de primeira viagem não está sendo fácil pra ela. 

– E o embuste do Carlos deu algum sinal de vida? – Ela pergunta indignada.

– Ha, menina! Tomou chá de sumiço! Mandou uma mensagem pra ela no dia do ultrassom do bebê dizendo que ia e nem sequer apareceu.

– Que cafajeste!!!! Ela já sabe o sexo da criança?

– Sim, é um menino. Ela ainda não escolheu um nome pra ele, mas com certeza não homenageará ao doador de DNA, porque pai não está sendo.

E nossa conversa é interrompida subitamente por uma queda gigantesca. Estimo com 1,85m de altura e uma camisa social azul-claro. Os óculos de grau caíram aos nossos pés e a essência de sândalo parou a redação. Temos um Clark Kent tupiniquim.

Me abaixo pra pegar os óculos e os entrego a um dono desconcertado que não reparou no chão de madeira encerado. Vida que segue! Suzi silenciou por um momento assim como as outras que contemplavam o cabelo no gel e a barba por fazer.

Dandara abre a porta do seu escritório e grita:

– Santos, você está bem?

– Sim, Dandara. – Ele responde enquanto põe os óculos e me agradece com um sorriso desajeitado.

– Lara, esse é o seu novo assistente. Mostre a ele a mesa da Cris. Será dele por esses meses. E meninas, ao trabalho! Temos uma edição pra fechar! A revista não pode parar!

E lá se foi o mulherio num alvoroço só, a arrastar cadeiras e a teclar. Suzi sorri e retorna  à sua mesa. Ele estende a mão e diz:

– Prazer, Santos.

– Prazer, Lara. Deixa eu te mostrar a sua mesa. – Ele me acompanha ainda sem graça. Não é pra menos. 

Após as apresentações breves vou rascunhar meu artigo.

Culpada, eu?

Tenho o título mas ainda assim me faltam palavras para descrever as dores que ouvi naquela ONG de apoio. Tantas mulheres que apanharam de seus companheiros, foram ameaçadas, reprimidas, estupradas, roubadas e tiveram as suas vidas negligenciadas por causa de um sistema que nos ilude de que a felicidade tem que estar ligada a formar e manter um casal custe o que custar, porque caso contrário a culpa é toda sua. Foi você que respondeu a ele o que não deveria, foi você que saiu com a roupa que ele não gostou, foi você que deveria ter se calado. Eu vi tanta dor e agora em março, em pleno 2020 os números de feminicídio não caíram. 

Meu Deus! Estou bloqueada! Que saco! Já são quase 16 hrs, Suzi me arranjou um encaixe numa terapeuta e tô indo pra consulta. Que a leonina Dandara não me grite nas próximas horas. #Partiu 

– Como você se sente diante da situação? – me pergunta a Dra. Tânia. Alguém na casa dos 40, que gosta muito de tons nude nas paredes.

– Sendo sincera, vazia. É como se tudo tivesse sido pintado em cinza e talvez eu não queira mais retocar as cores.

– Por que?

– Porque em algum momento acredito que elas deixaram de serem necessárias. Só faziam sentindo no passado, hoje não mais. Que graça tem em ligar o som quando a festa acaba e os convidados foram embora? Que graça tem em balões que se esvaziaram? 

– E por que não seguir adiante?

– Porque apesar de doer, essas visões de lembranças do passado ainda me acalantem. Talvez eu queira ainda estar lá. Talvez essa ferida clandestina seja na verdade a única ambiguidade que eu queira manter entre dor e conforto. Talvez eu goste desse título de Quíron. 

O relógio verde-água em forma de pássaro mostra às 17:30, sessão encerrada.

– Bom, Lara, o tempo acabou mas espero nos vermos na próxima sessão . – Ela me concede um sorriso reconfortante. 

Volto pra casa com alguma certeza. Vejo dois meninos correndo feito condenados na portaria e Seu Mário me recebe com um sorriso que só os mais velhos sabem, quando parece que vêm através de nós.

– Boa tarde, D. Lara!

– Boa tarde, Seu Mário. – Ele era melhor amigo do meu padrinho em Ribeirão Preto,  antes dele partir.

Subo e lá está Brida com o seu bom humor, deitada no meu sofá. Se não fossem por aqueles olhos não saberia distinguir aquela bolinha branca do meu sofá. Me deito ao lado dela e fico alternando entre a minha galeria e as notificações do aplicativo de relacionamento que a Cris tinha me indicado.

Vejo uns tipos bem engraçados. Pena que ainda não encontrei um gêmeo do Hugh Jackman pra chamar de meu.

– O fã do ACDC me parece legal, você não acha? – diz Ricardo recostado à porta do meu quarto. A jaqueta de couro preta que eu tinha dado de presente no seu aniversário de 29 e a velha gaita no bolso da calça o ilustravam bem.

– Talvez. Mas ainda não tenho certeza. – Respondo com um suspiro impaciente. Ele revira os malditos olhos azuis.

– E o bonitão da redação? Seu novo assistente. – Ele sobe uma sobrancelha e me concede um sorriso de gato. 

– Não misturo trabalho com vida pessoal, você sabe. – retruco e ele sorri escorregando até o chão na soleira da porta e fica um instante em silêncio a me observar.

– Não acha que está sendo dura demais consigo própria? Sério, não parece você!

Não parece essa moça da foto aí que tirei segurando esses balões. – Ele sorri.

– Eu só aceitei fazer aquilo porque era o nosso aniversário de namoro mas você sabe o quanto fiquei sem graça!!! – Replico vermelha. Ele se aproxima e amplia a foto com um toque na tela.

– Mas me diz, quem é essa na foto? – Ele me fita.

– Sou eu. – Respondo fracamente. 

– Sim, é você, Lara Jones. 

Epoché: Respire, Lara Jones, encha de ar os teus pulmões, nada precisa fazer sentido até que você resolva dá-lo.

Autora: Nikke Salvatore
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