Não se esqueça, Lara Jones!

Por: Nikke Salvatore

“As horas que suavemente emolduraram

O olhar amoroso onde repousam os olhos

Serão eles o seu próprio tirano,

E com a injustiça que justamente se excede;

Pois o Tempo incansável arrasta o verão

Ao terrível inverno, e ali o detém,

Congelando a seiva, banindo as folhas verdes,

Ocultando a beleza, desolada, sob a neve.

Então, os fluidos do estio não restaram

Retidos nas paredes de vidro,

O belo rosto de sua beleza roubada,

Sem deixar resquícios nem lembranças do que fora;

Mas as flores destilaram, sobreviveram ao inverno,

Ressurgindo, renovadas, com o frescor de sua seiva.”

(Soneto 5, William Shakespeare)

– Esse era um dos seus favoritos, né Ricardo? – afogo minha cabeça no livro mais uma vez em busca do seu cheiro. Ele ainda estava impregnado. A gaveta da cômoda dele era uma boa preservadora. Nos dias de raiva eu ainda a chamo de Madame Bovary, por ser a maldita amante da burguesia dele mas hoje ela tem sido uma boa Frau Herta. Fecho-o e coloco ao lado do meu abajur. Observo o formato de boca e me lembra de outra peripécia de Shakespeare.

– Agora posso chamar você de Gargântua. Perdão, Mick! Foi um momento infame. – e assim as lágrimas vêm. São três da manhã dessa maldita cidade. E este dia foi tão rápido e intenso como um se fosse uma continuação de Matrix versão atual. E só agora me caiu a ficha de tudo. Deus do céu!

Meu café da manhã ao som de Come as you are do Nirvana era um prenúncio e eu não percebi. Brida estava agitada entre as minhas pernas e as da cadeira. Eu havia desenterrado a minha receita de panqueca com banana caramelizada e molhava com o bom e velho café. Havia permitido um coque ao meu cabelo acompanhado de um vestido jeans e um cinto vermelho fino. Todos os coturnos resmungaram uníssonos na entrada do closet ao me verem pegar sandálias ladylike vermelhas do Natal passado.

– É só por hoje, eu prometo. – Eu ri. E lá vamos nós. Mentira! Me olhei no espelho e aquela bonequinha não era eu. Lá vamos nós com a camiseta preta acinturada com a estampa dos Ramones, a calça jeans skinny clara e oi, nova jaqueta de couro!!! Kkkkkkkkkk

Ao entrar no elevador uma companhia pouco provável. Marta, a vizinha do 405, no seu costumeiro ar cansado e desconfiado. Sorri para tentar quebrar o gelo porque o silêncio sempre foi a terceira pessoa entre nós há quase um ano. Nunca entendi o porquê. Ela nem de longe parecia a vizinha que me recepcionou com uma torta de abacaxi e calda e uma boa conversa de fim de tarde.

– Bom dia, Marta ! 

– Bom dia, Lara! – Ela se recostou num canto do elevador puxando a bolsa preta mais para perto de si. Ela evitou o contato visual e eu resolvi não insistir . As portas da esperança abriram-se. Eu finalmente estava aliviada porque consegui redigir um artigo decente para entregar a Dandara. Mas aquele silêncio desconfortável com Marta ainda me perturbava. Peguei o Uber.

          Na redação os rumores da nova pandemia chegando ao Brasil tomam   forma. Os comentários cada vez mais trazem realidades tão dolorosas que é como se uma nuvem densa de tristeza substituísse as de tempestade que conheço. Uma parte da equipe, em torno de 5 das meninas estão  na sala de café com um Santos vacilante numa parada obrigatória e a minha caneca potterhead de novo é fornecida por Suzi. É uma figurinha e tanto! Um dos defeitos é de nunca decidir sobre qual é o melhor: DC ou Marvel. E agora sopra sua caneca de café com a logomarca do Superman como se não tivesse amanhã. É alguém aí queimou a língua! Kkkkkkk. Por um milésimo de segundo o tempo ali pareceu congelar como se fosse um quadro que de alguma forma eu tivesse que guardar na minha memória. Os azulejos brancos vitrificados, com algumas pequenas pichações nossas de caneta da época que éramos estagiárias (nosso rito de passagem secreta), as cadeiras azuis-piscina sendo uma com três pernas no conjunto (nunca entendíamos o porquê desse design mas as piadas infames sempre vinham), as três cafeteiras de guerra, os potes de biscoitos que se esvaziavam mais rápido que liquidação de roupas em fim de ano. Tudo tinha um ar parado, congelante. O nosso pequeno armário de canecas me trazia uma nostalgia de casa de vó. Deus! O que é isso?! Saio do pequeno transe com a pergunta de Bia:

         – Em quanto tempo vocês acham que vai ser divulgado o novo caso por aqui? 

         – Acho que uns três dias no máximo. – responde Suzi. 

        – Não ache que passe disso. Não mesmo. Se brincar já temos algumas dezenas de infectados não-notificados. – Ela completa. Paula com suas tranças boxer nos fita e diz:

       – Melhor nos prepararmos para a tragédia que nos anuncia.

Tomo meu último gole de café e pego minha bolsa. Volto pra minha mesa. Dandara respondeu ao meu email com o artigo. com um pequeno elogio e uma reclamação pela demora na entrega. Foram dois dias só, mas eu entreguei dentro do prazo. Enfim…não se pode ganhar tudo. A reunião de pauta será em meia hora e se meu assistente de língua queimada não sofreu nenhum outro acidente deverá me trazer os slides com a proposta que tenho para um espaço no site da revista. Assim espero! 

A reunião iniciou fluida com alguns questionamentos sobre novas pautas. Santos ora estava completamente compenetrado com as anotações adicionais ora absorto com o mundo à sua volta. Dandara concede o momento que eu havia pedido para a apresentação de slides.

– Bom, num primeiro momento quero dizer boa tarde a todos. Queria aproveitar este momento para propor, um espaço no site da nossa revista  para a produção de material com depoimentos, poemas e produções no geral para mulheres que passaram por esse processo e estão se reconstruindo assim como uma rede de realocação no mercado. Talvez até um concurso literário. – Respiro mais aliviada por ter posto tudo pra fora.

– É uma boa ideia. Tenho que admitir. Temos algumas ONG’s locais que poderíamos fazer um contato mais acertado. Acho que somará com o conceito da nossa revista de empoderamento feminino. Posso conversar com o pessoal do marketing para iniciarmos a campanha. – Ela me responde com os dedos tamborilantes na mesa de reunião e um sorriso de canto de boca. Agora sei que fiz um bom trabalho. E logo um burburinho se forma com possíveis ideias adicionais.Eu desvio o olhar por um instante para Santos, ele me concede um sorriso desconcertado e ajustando os óculos no rosto.

– Certo, dispensados. Paula me repasse os tópicos da reunião para eu discutir com o pessoal do marketing. – Ela se vira pra Paula pegando sua bolsa.

As horas voaram. E de novo estou em casa na companhia de Brida. Largada no sofá, ouvindo With arms wide open do Creed. Suzi me manda uma mensagem me chamando para uma pizza com o pessoal mais tarde, mas sem ânimo, dispenso.

– Você já foi mais animada. – Diz o portador dos malditos olhos azuis acariciando meus cabelos. Percebo agora que estou com a cabeça em seu colo.

– Você já foi mais assertivo. – retruco. Ele pega a minha direita, a beija e me diz:

– Lara, não permita que os intervalos sejam mais que intervalos. Você é irisdicentemente única. Não se resine. Não se eclipse. As tuas tempestades solares são mais encantadoras que esse mar congelante.

– Ricardo, o tempo não existe para mim, apenas o sentir. – digo isso me erguendo e encostando a minha testa na dele.

– E o que o seu sentir te diz agora? – Ele questiona enquanto entrelaço nossas mãos. 

– Que as minhas conchas memoriais ainda me dignificam com pérolas e são meus cobertores ao adormecer. E isso é inevitável. E o que fazer agora?

– Então, não se esqueça, Lara Jones!!! – Ele completa com a respiração entrecortada, uma lágrima desce e nos beijamos.

Epoché: Respire, Lara Jones! Permita-se existir como o paradoxo entre o ser e o nada. Afinal, nada precisa fazer sentido, até que você resolva dá-lo.

Atenção Leitor! Este conto é de minha propriedade intelectual, Nikke Salvatore, no qual autorizo a reprodução inteira pelo Borimbora Blog. Não autorizo a reprodução inteira ou parcial por terceiros em quaisquer que sejam outras formas e plataformas.

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