‘Oração do Amor Selvagem’ retrata violência gerada pela intolerância religiosa

Oração do amor

Quando, há alguns anos, começou a trabalhar no projeto de Oração do Amor Selvagem, o diretor Chico Faganello não imaginava que discussões sobre intolerância, principalmente a religiosa, fossem estar tão em voga atualmente.

O filme, que está em cartaz, apesar de não enfocar nenhuma religião específica, trata, entre outros temas, de como “as pessoas se escondem atrás da religião para se esconderem, na verdade, de suas frustrações, seus medos. E  justificam qualquer coisa em nome de Deus”, como observa o diretor catarinense, que antes de decidir estudar cinema na Itália e também nos Estados Unidos (na New York Film Academy), trabalhou anos como jornalista.

Não por acaso seu olhar atento a fatos reais que mais parecem uma ficção absurda foi o que o levou a se interessar pelo caso dos crimes cometidos por um camponês em uma comunidade do interior de Santa Catarina nos final dos anos 1970. Faganello transformou essa história em ficção e a batizou de Oração do Amor Selvagem.

O filme conta a história de Thiago (Chico Diaz, em ótima performance), que, em busca de tratamento para sua mulher doente, viaja com ela e com a filha Clara (Camilla Araújo) para um vilarejo, onde são acolhidos. Mas pouco tempo depois ele decide deixar o local, que é dominado pelo fanatismo religioso e por um líder que manipula os fieis.

Encontra novo abrigo na casa da viúva Anita (Sandra Corveloni), além de trabalho e a possibilidade de que Miranda (Camila Hubner) ensine Clara a ler. Mas novamente Thiago, que não tem religião, desperta a desconfiança do pastor local, Kurtz (Ivo Müller, também em ótima caracterização). Para piorar, Thiago se envolve com Miranda.  O namoro desperta a ira de Kurtz, que é irmão de Miranda, e ele usa o fato do forasteiro se negar a ir à igreja para incitar a comunidade contra ele.

Fatos reais – “A decisão de montar a história como ela é no filme aconteceu quando fui pela primeira vez entrevistar quem presenciou a tragédia. Eu já havia entrevistado o coronel que deu o tiro de misericórdia no sujeito que foi fuzilado, e hoje ele vende armas. E visitei a região, vi o que sobrou. Entrevistei algumas pessoas e entendi que a ferida estava muito aberta ainda”, contou Chico ao TelaTela.

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Quando Miranda (Camila Ubner) se apaixona por Thiago (Chico Diaz), desperta a ira de seu irmão, o pastor Kurtz (Ivo Müller)

“As pessoas, apesar disso, não falavam muito sobre o assunto. E comecei a imaginar o sofrimento daquela família e os pequenos episódios criados quando ele teve seu surto psicótico, as lendas criadas em torno daquilo. Tudo isso misturado ao preconceito ao racismo porque Thiago e sua filha eram pobres e negros. E comecei a imaginar que, se eu fosse por esse caminho, o longa seria uma história de demência e loucura do início ao fim.”

Como queria fugir deste viés, pois “o filme viraria uma história ou de (Fiódor) Dostoiévski ou um filme de terror gore”, Chico decidiu criar uma narrativa em que o personagem de Thiago surge, antes de mais nada, humanizado, com sua história e sua personalidade traçadas de forma que o espectador entenda o desenrolar de suas ações.

“Não é possível criar uma história só de entretenimento quando a gente tem respeito pelo personagem. Pessoas que fizeram parte desta história real ainda estão vivas e isso poderia ser desconfortável para elas e criar até problemas”, explica o diretor, que em sua fase na Itália também estudou com o diretor na Ipotesi Cinema, escola de cinema criada por Ermano Olmi. “Era algo meio anárquico. A gente produzia tudo com muita liberdade. E como ele tinha muitos amigos cineastas, eles iam dar palestras, fazer conferências, sem contar a videoteca imensa. Foi um grande aprendizado”, relembra Faganello.

Saga trágica – De volta à trama de Oração do Amor Selvagem, ainda que o diretor tenha feito adaptações a versão ficcional da história real, o filme acaba mantendo seu caráter trágico. Todos os atos de Thiago, por mais que ele fuja deles, levam-no a cometer o crime final. “E sem necessariamente que tudo seja de responsabilidade dele. É um cenário complexo. E para piorar, ainda há a questão da responsabilidade reprimida do pastor, que vive com a irmã”, explica o diretor.

Para criar a comunidade para onde Thiago vai com a filha e a mulher doente no início do filme, Faganello buscou inspiração nas sagas dos Monges do Contestado, que viveram na região fronteiriça entre Paraná e Santa Catarina no início do século 20 e mobilizaram a população local com seu messianismo e sua postura crítica ao governo da época, que culminou em conflito armado.

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Thiago (Chico Diaz) defende que “nenhum Deus pode impedir a felicidade do homem”

Para o ator Ivo Müller, que vive o pastor Kurtz, este é um filme que, intolerância religiosa, fala também da própria religião. “Se a gente for se perguntar por que o pastor fez aquilo com o Thiago, vai ter sido por motivo religioso ou foi por motivo pessoal?”, indaga Müller. “Se chega um forasteiro e se mete com a irmã do líder religioso local, isso dá problema em qualquer lugar do mundo”, acrescenta o ator, que ganhou fama no cinema em 2012, ao ser um dos protagonistas de Tabu, do português Miguel Gomes.

Governo em nome de Deus, questões pessoais – Para Müller, Kurtz governa supostamente em nome de Deus, mas as questões pessoais que o movem são fortes. “Ainda que Miranda é uma irmã com quem ele tem uma relação quase como de marido e mulher, meio maluca. Misturar estas duas coisas faz parecer quase como se ele roubasse a mulher do outro”, comenta o ator, que foi buscar em Ibsen inspiração para criar o Pastor.

“Estudamos a peça Brand, do (Henrik) Ibsen, de 1885. O Brand é um padre que vai encontrando gente em seu caminho e tem muita dificuldade de lidar com eles. Ele é muito duro, mas acredita que está fazendo o bem. E acaba fazendo o mal. Isso é muito bonito se a gente pensar na complexidade do que move um homem”, acrescenta Müller.

Já Thiago, que afirma que Deus mora dentro de cada um, é menos, ou nada, ligado à religião como doutrina. Sua filha Clara também. Ela tem uma religião mais intuitiva, ligada à natureza e não a valores. “E o Thiago e a filha passam por dois lugares em que a doutrina é muito forte. No primeiro há a questão do líder religioso local ter de ser o primeiro homem das mulheres. E no segundo, a qual ele tenta se adaptar, acaba sendo mais violenta e racista”, conta Müller que para viver o Pastor Kurtz, teve de tingir seu cabelo de loiro. “O Chico falou que se eu não quisesse ficar loiro, teria de escalar outro”, revela o ator.

A mudança, no entanto, ajudou Müller. “Foi bom me olhar no espelho de uma forma que nunca tinha visto. Isso de mudar o cabelo brinca até com a minha sexualidade. Me ajudou a descobrir algo no roteiro que eu não tinha descoberto sobre o pastor. Não necessariamente sobre orientação sexual, mas sim no sentido de romper algumas barreiras. Para o homem isso é muito forte”, explica Müller, que realizou mais um outro filme com a cabeleira loira, o terror ainda inédito O Diabo Mora Aqui.

Para Müller, contracenar com um elenco variado e plural também foi outro ponto a favor. “Foi muito bom poder ter um antagonista como o Chico Diaz. Quando cheguei na locação, eles já havia filmado outras cenas do longa e era como se eu fosse um estranho chegando. E nossa relação, muito em função de já construir uma dinâmica que haveria nas cenas, era até um pouco distante. Ele já estava como Thiago e eu, como o Pastor”, comenta Müller. “Depois, claro, nossa relação pessoal era amistosa. Mas foi interessante construir esta dinâmica no set. Já da Camila (Ubner), com quem convivo e contraceno tanto, ficamos amigos logo de início.”

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A menina Clara (Camilla Araújo), em seu primeiro papel no cinema

História local, elenco nacional – Para Faganello, montar um casting tão variado foi trabalhoso, mas valeu a pena. “Com exceção da Camilla Araújo (a menina Clara), que fazia seu primeiro trabalho, todos eram mais experientes. Aprendi muito com a criança que a questão de tudo é brincar. Ela nunca tinha andado em cavalo, chegou, saiu do carro e pulou em cima do cavalo. Naquela hora eu sabia que seria ela.”

Já para os adultos, o diretor montou uma equipe de veteranos. “Chico Diaz, além do grande talento como ator, tinha o físico perfeito para o papel. Era preciso haver a diferença entre o ator moreno e o loiro”, explica Faganello. “A Sandra Corveloni, que vive a viúva Anita, é uma atriz única. Não conheço nenhuma como ela, que é tão versátil, Georgina Castro (Lídia) é cearense e também ótima. O Ivo é um ator que é incrível e já tinha filmado comigo antes. E Camila Ubner (Miranda) foi outro achado. Ela tem apenas 22 anos, mas já mostra a que veio”, e assim fomos formando o elenco e a equipe toda.

A mistura funcionou e Faganello, que diz saber que Oração é um filme para plateias “que buscam um outro ritmo de cinema”, tem se surpreendido com a reação dos espectadores das cidades por onde o filme já passou. “São pessoas que não estão ligadas ao universo regional, a história real, mas que entram na trama e se emocionam”, comentou. “Eu tentei fazer um filme simples, para que todos pudessem embarcar na história, sejam de Santa Catarina ou de qualquer outra região do Brasil.”

Em busca desta simplicidade, Faganello evita maneirismos, movimentos vertiginosos de câmera e optou por um ritmo muito clássico de cinema. “O tempo é mais dilatado no início, mas depois engata”, diz o diretor. De fato, por trás da aparente simplicidade de Oração do Amor Selvagem há um trabalho longo de depuração tanto ética quanto estética.

Fonte: Carta Capital

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