A cultura do estupro é a expressão mais radical da cultura da superioridade

Ninguém educa um filho para ser um estuprador, mas criamos meninos imbuídos de um sentimento de superioridade em relação às mulheres

Este é um texto especial da editora Vivian Alt em decorrência do recente caso de uma jovem violentada por um grupo de homens na cidade do Rio de Janeiro. Embora seja um tema fora do perfil editorial do site, o Politike sente a necessidade de debater o assunto com seus leitores.  

Imagem: Júpiter, o mais poderoso dos Deuses romanos, toma a forma de um touro branco e convence a princesa Europa, por quem estava apaixonado, a monta-lo. Quando ela o faz, ele foge para a ilha de Creta, onde a estupra. O quadro é de Titian (Tiziano Vecellio), pintor veneziano do século 16.

Há quase uma semana, falamos intensamente sobre a “cultura do estupro”, que contribuiu para uma brutalidade cometida contra uma menina de 16 anos na cidade do Rio de Janeiro. Essa mesma cultura deixou os criminosos que a estupraram coletivamente confortáveis o bastante para publicarem fotos e um vídeo do crime em uma rede social. Essa cultura também permitiu que amigos desses indivíduos ridicularizassem a vítima ao comentarem as imagens.

Foi necessário que essas imagens grotescas parassem na internet para que um movimento de revolta ocorresse, levando à discussão da “cultura do estupro”.  Mas o que significa, na realidade, essa cultura do estupro?

A maioria dos comentários, textos, artigos e postagens em mídias sociais fala sobre uma cultura que pune as vítimas enquanto os perpetradores são isentados ou desculpados por diferentes motivos. Existe, contudo, muita coisa por trás da cultura do estupro. Discutimos sobre a necessidade de educar as meninas para que não “provoquem” um estupro e de educar os meninos para não estuprarem. Ninguém ensina meninos a estuprar, mas os ensinamos a sentirem-se superiores. Mesmo que involuntariamente, as famílias e a sociedade mostram diariamente aos meninos e homens que eles estão em vantagem na vida. Que são superiores.

Os atos cotidianos são tão pequenos e sutis que é difícil perceber como contribuímos para a cultura da superioridade – e, finalmente, do estupro. Tudo começa em casa. No café da manhã, no almoço, no jantar, ou no churrasco, com aquela piadinha machista tão sem maldade do papai, do titio, dos amigos da família. E aquela clássica frase no trânsito: tinha que ser mulher! Quem não ouviu? Não é grosseiro, não é maldoso. É sutil, mas existe. E em muitas famílias (quiçá na maioria) ocorre com frequência. Na televisão, em quase toda a programação dos canais abertos temos referência à mulher como objeto: comercial de cerveja, novelas com os clássicos estereótipos, programas de auditórios (a Banheira do Gugu e as dançarinas do Faustão são exemplos famosos), entre outros. Também se tem a reprodução do ideal da mulher: nos comerciais de produtos de limpeza ou cozinha, cuidando das crianças, sendo bela, recatada e do lar.

Enquanto crescemos, ouvimos nossos pais censurarem nossas roupas e nossos corpos, mesmo que não de forma bruta. Um “zelo”, um cuidado de quem não quer ver sua filha ser vítima de violência. Para os meninos, a preocupação é muito menor. Antes de saírem de casa, as meninas ouvem diversos conselhos: cuidado com quem você conversa, preste atenção na hora de comprar bebida para ver se não colocaram nada dentro, não fique sozinha em lugares isolados, não pegue táxi sem ser da cooperativa, etc. Em países como Índia e China, por exemplo, vai-se além. Em ambos os países, é proibido saber o sexo do bebê antes do nascimento para evitar abortos de meninas. Na Índia, há inúmeros casos de desnutrição entres meninas, uma vez que famílias de menor renda tendem a priorizar a alimentação de meninos.

Os meninos crescem nesse mundo. No Brasil, eles veem e ouvem tudo isso a vida inteira – da piada aos conselhos, dos comerciais aos programas de TV. E é inevitável perceberem que têm menos restrições e menos dificuldades. Nasce, assim, um sentimento de superioridade. Claro que muitos não veem essas vantagens e privilégios como superioridade inerente, mas sim como uma construção injusta da sociedade. Há outros que se entendem superiores e, embora não pratiquem violência contra mulheres, não contestam quando outros (conhecidos ou não) cometem tais crimes.

E sempre existirão aqueles que levam a cultura da superioridade ao extremo. E esse extremo chama-se violência, estupro. Ninguém educa um filho para ser estuprador, mas criamos meninos imbuídos de um sentimento de superioridade. Não atentamos para aquilo que cotidianamente pode transforma-los em pessoas que praticam ou compactuam com a violência contra a mulher. Esses detalhes do dia a dia também reforçam nosso hábito de culpar a vítima: a saia curta, o batom vermelho, o decote. “Mas ela estava sozinha”, “estava bêbada”, “estava drogada”, “estava no lugar errado”, “estava dando em cima do cara”, “estava pedindo”. Não seria desumano usar esses mesmos argumentos para “justificar” o porquê de um homem ter sido estuprado? Porque estava bêbado, drogado, sozinho, ou se estivesse dando em cima de uma mulher, etc.

O estupro é a expressão mais radical e mais dramática desse sentimento de superioridade. Será sempre muito complexo combater o estupro enquanto homens se julgarem superiores às mulheres. A cultura do estupro seguirá firme enquanto acharmos que falar mal de machismo é “mimimi”. Enquanto continuarmos tratando o respeito à mulher como uma luta feminista e não da humanidade. Enquanto acharmos que igualdade de gênero se refere exclusivamente aos direitos das mulheres e não aos direitos de todos nós.

Fonte: Carta Capital

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